Sistema temporal: Emprego dos tempos verbais no português falado
Tempo é uma categoria gramatical, mais concretamente uma categoria verbal nas línguas românicas, que caracteriza e localiza, numa linha temporal, a relação entre o momento de fala e os acontecimentos nele relatados. De acordo com Celso Cunha e Lindley Cintra tempo “é a variação que indica o momento em que se dá o facto expresso pelo verbo” (1999: 379). Essa organização temporal dos acontecimentos, tendo como ponto de referência o momento da enunciação, ocorre em três domínios distintos:
- Passado
- Presente
- Futuro
É neste sentido que se pode falar de uma relação de anterioridade, simultaneidade ou posterioridade relativamente ao momento de fala ou ao momento dos acontecimentos enunciados. As línguas que marcam distintamente estes três domínios conceptuais no seu sistema verbal, como é o caso do português, diz-se possuírem um sistema verbal tripartido.
Antes de passar concretamente ao sistema verbal do português falado, é necessário realçar dois aspectos teóricos importantes: o conceito de temporalidade e a abordagem coseriana do sistema verbal românico.
Enquanto que tempo é uma categoria verbal, com características morfológicas específicas, temporalidade diz respeito a todos os mecanismos de que uma língua se serve, para além dos verbais, para estabelecer a organização e localização temporal dos acontecimentos, como por exemplo advérbios (hoje, amanhã, ontem), substantivos integrados em grupos preposicionais que funcionem como advérbios (hora, dia, semana, mês, século), adjectivos (antigo, novo, actual, moderno), etc..
Na obra Das romanische Verbalsystem (1976) Eugenio Coseriu aborda directamente a questão da organização dos factos enunciados no eixo temporal, distinguindo dois níveis:
- o nível actual (“die aktuelle Zeitebene”) que corresponde à linha temporal real, ou seja, o falante relata os acontecimentos tendo em conta o ponto temporal actual em que se encontra. Desta forma um acontecimento pode ser presente (está a acontecer no momento da enunciação), passado (ocorreu antes do momento da enunciação) ou futuro (irá ocorrer depois do momento de enunciação). Os tempos verbais característicos do nível actual são o presente do indicativo, o pretérito perfeito simples e o futuro sintético. Este é, de acordo com Coseriu, o nível da perspectiva primária – a posição do falante em relação à acção verbal.
- o nível não-actual (“die inaktuelle Zeitebene”) diz respeito a todos os factos e acções que estão fora da linha temporal actual dos acontecimentos, ou seja, as acções que funcionam como background do acontecimento central e que, por isso, estão fora da actualidade do falante. Os tempos verbais característicos do nível não-actual são o pretérito imperfeito (apresenta um acontecimento como anterior em relação ao acontecimento do momento de enunciação – anterioridade) e o condicional (apresenta um acontecimento como posterior em relação ao acontecimento do momento de enunciação – posterioridade). Este é o nível da perspectiva secundária que permite a criação de espaços temporais posteriores ou anteriores dentro do nível actual; trata-se, no fundo, do desdobramento da perspectiva primária.
O português apresenta um sistema verbal bastante complexo, constituído por três modos (indicativo, conjuntivo e imperativo) subdivididos em vários tempos, simples e compostos, cada um deles com significados centrais (prototípicos) e significados periféricos.:
- modo indicativo: presente (lavo), pretérito imperfeito (lavava), pretérito perfeito simples (lavei), pretérito perfeito composto (tenho lavado), pretérito mais-que-perfeito simples (lavara), pretérito mais-que-perfeito composto (tinha lavado), futuro simples (lavarei), futuro composto (terei lavado), condicional simples (lavaria), condicional composto (teria lavado)
- modo conjuntivo: presente (lave), pretérito imperfeito (lavasse), pretérito perfeito composto (tenha lavado), pretérito mais-que-perfeito composto (tivesse lavado), futuro simples (lavar), futuro composto (tiver lavado)
- modo imperativo: presente (lava)
Para Coseriu, o português é a língua românica que, na sua concretização, melhor exemplifica o modelo por ele apresentado para o sistema verbal românico. Contudo, segundo o estudo elaborado por Tlaskal (1984: “Observações sobre tempos e modos em português”), comprovado também no trabalho de Sabine Eckhoff em 1983 (Die Ausdrücksmöglichkeiten des Futurs in der brasilianischen Gegenwartssprache anhand von Film- und Bühnentexten, tese de final de curso inédita), os significados centrais e periféricos dos tempos verbais do português sofreram (e estão a sofrer) alterações no português falado. Desta forma, assiste-se a uma simplificação do sistema temporal (no indicativo), sendo o mesmo reduzido a apenas três tempos verbais, afastando-se na prática do modelo defendido por Coseriu:
- presente (falo), usado para expressar não só o presente mas também o futuro (como substituição do futuro sintético) e até mesmo o passado;
- pretérito imperfeito (falava) que, além de ser usado como imperfeito, substitui também o condicional;
- pretérito perfeito (falei), usado não só como perfeito mas também como substituição do pretérito mais-que-perfeito.
[Tlaskal, Jaromír Jr. (1984). “Observações sobre tempos e modos em português”, p. 254]
Esta redução, impulsionada pela já elevada frequência dos tempos em causa no português, vai ao encontro dos princípios de simplificação e economia de esforço linguístico e implica um alargamento das funcionalidades dos três tempos verbais, que se tornam mais abrangentes nos contextos de emprego e, consequentemente, menos específicos.
Texto de Vera Ferreira (Protocolo do seminário "Português Falado", do dia 19.12.05. Para mais informações consultar seminário - 19.12.05 em portuguesfalado.com.sapo.pt)
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